Há ligação direta de identidade e em alguns casos, de causa e efeito, entre a economia e a advocacia. Em tempos de recessão econômica, em que pese possa haver o crescimento de demandas geradas pelo inadimplemento de obrigações e, portanto, trabalho para a advocacia, a escassa circulação da moeda revela um cenário de conhecidas dificuldades. Quando a economia vai bem, além de mais oportunidades de serviço, o caminhar é para frente e a sociedade como um todo recebe seus influxos de variadas maneiras. Na advocacia forense, por assim dizer, começo e final de ano são momentos de menor demanda, inclusive pelo recesso e férias forenses, que no caso da instância superior vai até o primeiro dia útil de fevereiro. Esse diálogo entre economia, sociedade e advocacia é ainda permeado pelo adágio de certa forma verdadeiro de que é apenas após o Carnaval que as coisas engrenam no nosso país. Aliás, a advocacia de fato não está imune ao Carnaval: em recente decisão o Superior Tribunal de Justiça debruçou-se sobre a necessidade ou não da comprovação da “segunda-feira” do Carnaval em grau jurisdicional inferior, havendo notícias de que voltará ao tema.

Quando então 2020 aparentava querer descortinar-se vieram três fatos dignos de ocorrência nessa dinâmica estabelecida entre a economia e a advocacia, tendo a sociedade como pano de fundo. A crise do petróleo entre fevereiro e março e a acentuada queda da Bolsa de Valores que a sucedeu foram já impactantes na economia. Mas foi sem dúvida o coronavírus o destinatário da atenção mundial, consistindo em pandemia declarada pela Organização Mundial de Saúde.

É nesse cenário de todo indesejado e sequer imaginado que devemos buscar o papel da Ordem dos Advogados do Brasil frente às demandas e necessidades da advocacia. A reflexão aqui proposta foi escrita em 16 de março de 2020, data em que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil apresentou sugestões de funcionamento do Poder Judiciário nesse doloroso momento em que se alastra mundo afora o coronavírus. As sugestões foram geradas pela Diretoria do CFOAB e pelo Colégio de Presidentes dos Conselhos Seccionais e preconizam a unicidade de procedimento via Conselho Nacional de Justiça, com o que concordamos conforme será a seguir justificado. Dentre o mais relevante, a OAB sugeriu o prestigio das ferramentas tecnológicas, a disponibilização de dados para contato entre advogados, autoridades judiciárias e serventuários, a reavaliação periódica das medidas adotadas nesse inusitado momento social, o acompanhamento da produtividade do trabalho remoto e a a taxativa observação no sentido de que nos processos eletrônicos os prazos não devam ser suspensos, ressalvando-se todavia o direito de advogadas e advogados infectados ou mais seriamente comprometidos com os efeitos do coronavírus obterem a flexibilização dos prazos, desde que comprovados as circunstâncias e o efetivo prejuízo. Embora não seja a solução que nos agrade, a continuidade do processo eletrônico é algo que vem sendo sustentado amiúde na advocacia.

Num território onde informação e desinformação caminham de mãos dadas, na paradoxal era da comunicação virtual e das fake news, é acentuada a dificuldade em se conhecer mais de perto o assunto, sem o risco das inverossímeis narrativas de um extremo ao outro: mesmo dentro do contexto de uma pandemia, a informação tem circulado ou francamente defasada ou notoriamente exagerada, o que parece potencializar o efeito danoso (à saúde, à economia e à sociedade em geral) do coronavírus.

Some-se a isso o fato de que a doença e seus efeitos propagam-se em regime de progressão geométrica e o que se discutiu e se decidiu agora pode já ser diferente do que já esteja ocorrendo no instante seguinte, o que dificulta ainda mais o entendimento e o enfrentamento do assunto nos diversos meios e segmentos de afetação. No plano do Poder Judiciário, em primeiro lugar foram tomadas jurisdição a jurisdição medidas meramente orientativas, depois protetivas e finalmente aquelas voltadas para a não proliferação do vírus e da doença. Sem perder de vista a desejada e compromissada ininterruptividade da prestação jurisdicional, as medidas urgentes têm sido ressalvadas e tratadas em regime excepcional, de modo a que jurisdicionado algum fique sem a prestação da tutela jurisdicional como lhe garante a Constituição da República. Deve-se ponderar sobre o ponto que não parece de todo conveniente tratar como discricionário o exame juiz a juiz das situações consideradas emergenciais, que poderiam ter base objetiva ainda que exemplificativa.

Respeitadas as diferenças regionais e a expansão ou não do vírus na dimensão continental do território brasileiro, fato é que a diversidade de encaminhamentos ao menos numa mesma área territorial dificulta a interpretação de modo que não parece salutar, por exemplo, em São Paulo, que os seus órgãos judiciários estadual, federal e da justiça especializada tenham tratamentos não uniformes para o assunto. Seria de todo conveniente que - à vista de uma mesma área de atuação – a Justiça Estadual, a Justiça Federal e a Justiça do Trabalho adotassem o mesmo critério de funcionamento (ou não funcionamento) da Justiça. Ao menos na data em que escrita essa reflexão há disparidade de encaminhamentos, o que talvez merecesse padronização ao olhar da advocacia, por não parecer razoável exigir de uma mesma advogada, de um mesmo advogado ou de um mesmo escritório de advocacia atuantes em todos esses segmentos que tenham em mente onde há e onde não há suspensão de prazo e, mais, de quais ônus devam desonerar-se ou não e, por fim, que se os entendam enquanto indivíduos e concidadãos cujos direitos também estão albergados na esfera de proteção do estado.

A uniformidade de providências para com o mesmo fato parece ser primado da própria segurança jurídica e estaria tão mais alinhada aos direitos e garantias fundamentais do que se proceder aqui e acolá distintamente. O próprio Supremo Tribunal Federal vem tomando medidas isoladas, como noticiado nesta data em seu portal como se lê em http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=439484&ori=1, acessado às 22h10.

Ladeando isso, tem-se a questão do processo eletrônico versus o processo físico, que remeteria à necessidade apenas parcial da suspensão do serviço forense-jurisdicional, não sendo poucas as vozes que já se levantaram em defesa da continuidade do andamento dos processos para os feitos que tramitam eletronicamente, como se disse, a posição defendida pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Se pelo viés econômico haveria menor impacto nas receitas dos escritórios e das advogadas e dos advogados, por outro, sujeitar o profissional ao trabalho em condições não necessariamente adequadas seria não apenas prejudicial aos próprios clientes como também à pessoa que há por trás desse profissional. A vida, até para a sua preservação, momentaneamente mudou. O chamado “home office”, é verdade, permitirá alguns trabalhos, mas nem todos. A advocacia exige concentração ainda maior do que os finalistas de Grand Slam necessitam e no ambiente doméstico – compartilhado pelos entes queridos, não necessariamente absortos naquela mesma concentração – seria muito difícil alcançar o ambiente necessário para o exercício profissional. Não fosse isso suficiente, o trabalho do advogado (que é meio e não fim em si mesmo) está intimamente ligado à entrevista com o cliente, ao detalhamento de um documento, às explicações sobre este ou aquele fato, ao debate com outro colega, ao ensinamento doutrinário, à pesquisa jurisprudencial, todos atributos que ao menos via de regra se veriam frustrados para quem inopinadamente deixasse o recôndito profissional para trabalhar no regaço familiar. Por isso somos da opinião de que malgrado haja facilidades inerentes ao processo eletrônico, não seria de todo adequado impor à advogada e ao advogado que entremeio à pandemia do coronavírus continuasse prestando a outrem o seu concurso profissional, ressalvados naturalmente os casos urgentes. Além do que, do outro lado, haverá a precariedade da prestação da tutela, fator a ser considerado pois magistrados e serventuários também não terão as condições normais de trabalho para que, mesmo eletronicamente, o processo pudesse prosseguir.

Sustentar a inviabilidade do prosseguimento do processo eletrônico não não significa dizer que nos passa alheia a gravidade do assunto sob o viés econômico pois faturamento e recebimento de honorários estão intimamente ligados à efetiva prestação do serviço – ao passo que os boletos têm termo certo para liquidação. Afora o fato de que não necessariamente a continuidade do trabalho resultará em honorários, porque é bem provável que o cliente encontre as mesmíssimas dificuldades em sua área de atuação e não consiga remunerar o trabalho da sua advogada, do seu advogado ou do escritório por ele contratado, é preciso ter em mente a delicada situação financeira da advocacia como um todo, sem se revelar prerrogativa dos advogados mais modestos ou consequência das estruturas mais onerosas das grandes bancas. A advocacia está no mesmo barco.

Em passado não muito distante – e cujas ocorrências permanecem ainda que pontualmente consideradas – já se viu o sofrimento de colegas que assistiam em franco desespero ao desenrolar de greve do funcionalismo público judiciário e não conseguiam levantar honorários ou mesmo créditos dos quais possuíssem êxito contratual a receber porque não havia quem fizesse a então necessária guia. Mutatis mutandis, a situação agora não é menos drástica. A suspensão do serviço forense impactará e já está impactando o orçamento e o fluxo de caixa de grande quantidade de colegas e escritórios, e é preciso ter um olhar mais de perto, sério e comprometido para isso. A advocacia não pode ficar refém e enclausurada em suas necessidades financeiras. E embora o tema pudesse ser tratado ontologicamente, não é agora nem há espaço para isso nessa quadratura da história em que se vê uma pandemia avançar sobre tudo e sobre todos, cuja dimensão ainda não nos foi dado conhecer. Creio que as gerações futuras poderão melhor falar sobre o assunto. Seremos apenas personagens, sem espaço para a interpretação da história em curso.

De fato, há muitas causas e concausas para o cenário em que se vê inserida a advocacia brasileira, desde a proliferação inconsequente, indesejada e não tão bem fiscalizada de faculdades de direito até o ainda existente aviltamento de honorários sucumbenciais (não resolvido sequer pelo Código de 2015 nem mesmo pelo encaminhamento dado ao tema pelo próprio STJ) passando, ainda na era do processo eletrônico, pelo sistema de MLJ que sempre depende de certo grau de atuação humana para se ver encaminhado.

Mas há um ponto nevrálgico nessa história toda, que é o distanciamento da OAB das advogadas e dos advogados, não menor do que o verificado entre os profissionais e a instituição de classe, como revelam pelo menos no estado de São Paulo os altos índices de abstenção e votos brancos, nulo ou inválidos nos últimos certames – o que talvez possa ser explicado inclusive pelo fato de que, oportunisticamente ou não, serem as eleições marcadas em dias menos atrativos e sobretudo de não ser franqueado à advogada e ao advogado o voto eletrônico por intermédio do certificado digital que o habilita para todos os demais atos inerentes à profissão. Seria oportuno que se lançasse olhar mais atencioso ao assunto e que houvesse efetivo debate junto à classe, a fim de que o Conselho Federal pudesse deliberar. Não há dúvida de que a adoção desse expediente reforçaria a prática democrática junto à classe, sustentaria o resultado de eleições pela maior representatividade eleitoral e não prejudicaria em nada, aliás, pelo contrário, o sistema eleitoral como um todo. No momento, é preciso ter em conta o distanciamento entre personagens centrais: a “Ordem” e os “Advogados” ensejando a necessidade de um debate mais profícuo a respeito da relação da Ordem com as advogadas e com os advogados. E o cenário parece ser propício.

Bancas de advocacia enfrentarão significativos problemas com a pandemia. Advogadas e advogados passarão fome. Não se trata de figura de linguagem ou exercício retórico, mas sim de indesejada realidade. A classe não possui, em sua esmagadora maioria, estrutura para suportar a paralisação do serviço forense da qual decorre a cessação dos honorários. Não se espera da Ordem a solução dos problemas, mas também parece não ser recomendável seu silêncio obsequioso. É necessário que nesse momento de singular dificuldade todos se irmanem em busca de soluções possíveis. A advocacia deseja e também merece um olhar acolhedor de sua entidade de classe. É digna de aplauso a sugestão número 8 enviada pelo Conselho Federal ao Conselho Nacional de Justiça, que merece integral transcrição: “os processos em que há valores depositados em condições de serem liberados e as demandas de execução e cumprimento de sentença deverão ser priorizados, promovendo-se medidas que agilizem a expedição de alvarás e liberação de valores”.

Com um olhar mais introspectivo para as necessidades das advogadas, dos advogados e dos escritórios de advocacia, a OAB poderia estudar a viabilidade de algumas outras ações que pudessem, em especial nesse momento, ajudar a classe a enfrentar os graves efeitos que se avizinham dessa pandemia, Embora não tenhamos dados e números em mãos para com autoridade tratar do assunto, algumas medidas poderiam ser estudadas, trabalhadas e deliberadas pela OAB, como a isenção/diminuição de anuidade para as sociedades de advogados, a isenção/diminuição de anuidade das pessoas naturais das advogadas e dos advogados, o auxilio para a negociação de condições (financeiras, inclusive) mais vantajosas com as operadoras de plano de saúde que atuem para o segmento, o credenciamento de médicos para os exames de possíveis contaminações de advogados e familiares, observado os protocolos e as políticas públicas e, em casos de necessidade comprovada, a adoção, em caráter de extrema necessidade, de apoio financeiro a advogadas e advogados, na contramão dos cortes recentes de benefícios à classe que foram verificados no estado de São Paulo.

Por sua vez, a Caixa poderia prestar efetiva assistência aos advogados, dentre das atribuições legais que possui. Quando escrevíamos esse texto fomos positivamente surpreendidos com notícia dada pela Febraban no sentido de que as cinco maiores instituições financeiras a ela associadas poderiam prorrogar vencimentos de clientes pessoas físicas e Micro e Pequenas empresas pelo prazo de sessenta dias, a pedido do interessado, em contratos em dia e limitados aos valores já utilizados. Nesse momento de singular dificuldade econômica por que passa a sociedade em geral e a advocacia em particular, ademais de ser sem precedente recente, ousadia, criatividade e responsabilidade devem caminhar de mãos dadas. A abertura de linha de crédito especial para a advocacia poderia ser sustentada pela Ordem e pela Caixa de Assistência junto a instituições financeiras, buscando um novo modelo de negócio/crédito, propiciando àqueles que necessitarem a possibilidade do adiantamento de carteira de recebíveis contratuais ou mesmo sucumbenciais para que as advogadas e os advogados possam nesse inusitado momento colocar o alimento em suas mesas. Ainda sobre a Caixa de Assistência, há um clamor para que encontre meios, ela própria, de manter o relevante serviço prestado à advocacia. Se houver a suspensão dos relevantes serviços prestados pela Caixa, as advogadas e os advogados ficarão sem acesso às guias médicas, aos remédios com desconto, à entrada dos pedidos de benefícios etc. Espera-se outrossim que respeitadas as orientações do Poder Público e tomadas as precauções necessárias, a Caixa de Assistência possa prosseguir com o seu intento ao lado da advocacia, especialmente por ser esse um dos momentos de maior necessidade dos seus préstimos.

Não há dúvidas de que passaremos por mais esse desafio, nem de que o porvir trará até mesmo trabalho para a advocacia e muito menos dúvidas há de que sobre seus braços continuarão repousando Justiça e Paz social. Mas brada da advocacia um pedido de ajuda humanitário-profissional à OAB e à Caixa de Assistência.

A administração da pandemia tem como principal recomendação um ato simples de levar as mãos, além de evitar contatos e outras medidas de precaução disseminadas no noticiário que tem se ocupado do assunto. A única que não pode lavar as mãos nesse momento é a Ordem dos Advogados do Brasil.

Hélio Rubens Batista Ribeiro Costa

Diretor de Relações Institucionais DO INSTITUTO DNA

Av. Liberdade, n° 21, salas 405/6/7
São Paulo - SP - 01503-000
Copyright © INSTITUTO DNA - SÃO PAULO - SP - BRASIL